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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Evangeliza - Um outro mundo - Lauretta



Um outro mundo


Por entre as ruínas de uma velha torre de pedra, na montanha, existe a escola dos pássaros noturnos, frequentada pelos filhotes das famílias dos mochos, das corujas e das codornizes.
À noite, os pequenos escolares pegam suas pastinhas e vão assistir às aulas do professor, um velho mocho real. Hoje, o velho mocho está dizendo uma coisa importante:
- Tudo o que existe é preto. O preto é a essência de todas as coisas, ou seja, aquilo do que todas as coisas são feitas. Olhem à sua volta: parece-lhes possível que o céu, a terra, as plantas, as casas e todos nós possamos existir sem sermos pretos? Não, é lógico. Portanto, o preto é aquilo que constitui todas as coisas.
As palavras do professor são fáceis de ser compreendidas por seus jovens alunos. Na verdade, se eles esticam o olhar para fora das janelas destruídas de sua escola, não veem mais nada que não seja preto e qualquer coisa em que tentem pensar, só podem imaginá-la preta.
Ariana, uma corujinha de olhos redondos, redondos como duas bolinhas de tênis, está anotando em seu caderninho. O preto, ela escreve diligentemente, é a essência de todas as coisas. Uma lição fácil hoje, não é preciso preocupar-se em lembrá-la.
Voltando para casa, no oco de um grande carvalho, Ariana dorme tranquilamente em sua caminha. Uma tímida luz cor-de-rosa está colorindo o céu; mas agora a corujinha não pode mais vê-la, pois já dorme profundamente.
Em sonho, Ariana vê-se transportada a um mundo fantástico, um mundo que ela jamais havia visto antes, cheio de coisas novas, extraordinárias.
Quando acorda, a corujinha quer chamar a mãe para contar-lhe o magnífico sonho que teve, mas se dá conta de não ser capaz; faltam-lhe as palavras para descrever aquilo que viu em sonho, porque, naquele mundo, não havia nada que fosse preto!
“E se for verdade?” – começa a se perguntar Ariana. “E se aquele mundo com que eu sonhei existir mesmo? Eu tenho que saber se é verdade! Eu quero encontrar aquele mundo!”
Mas como pode uma corujinha partir em busca de um mundo desconhecido? Ariana sabe que a mamãe e o papai jamais a deixariam partir sozinha para ir sabe-se lá onde. E, então, tem uma ideia!
Espera até que todos estejam profundamente adormecidos para sair silenciosamente do ninho.
Um sino está tocando as doze badaladas do meio-dia. Ariana estica as asas para se soltar no céu, mas, de repente, uma forte dor nos olhos obriga-a a ficar sobre um galho. “O que está acontecendo comigo?”, ela se pergunta, assustada.
A dor agora é lancinante e terrível, mas o desejo de ver que Ariana traz no coração é mais forte do que tudo o mais e a corujinha retoma o seu voo.
Voa com os olhos semicerrados; vai batendo contra os ramos das árvores, mas não se arrepende.
Voa assim por algum tempo e, depois, com um esforço terrível, experimenta esbugalhar os olhos.
Assombro, emoção e alegria invadem seu coração, porque o mundo que está vendo é exatamente aquele que ela havia visto em seu sonho!
E, da mesma forma que não pudera descrever à sua mãe o que havia visto, agora também ela não encontra palavras para exprimir sua alegria. De seu biquinho sai apenas uma série de “Oooh!”, “Oooh!” intermináveis.
Inebriada de luz, Ariana voa no céu sem pousar; mas, quando o sino toca sete badaladas, a pequena coruja volta depressa para o ninho com medo de que deem por sua falta.
À noite, na escola, Ariana está sonolenta e encosta a cabeça na carteira, mas logo ouve o velho mocho dizer:
- Como vocês já aprenderam, o preto é a essência de todas as coisas...
A corujinha abre bem os olhos e exclama, segura:
- Não é verdade!
Todos olham-na com curiosidade e alguém pergunta:
- Como é que você sabe, Ariana? Quem foi que disse? E o que foi que você viu que não é preto?
O professor aproxima-se de Ariana e lhe pergunta com doçura:
- Então, Ariana, que história estranha é essa? Por acaso você sonhou?
- Sim , eu sonhei...
- Então, eu lhes dizia que ela tinha sonhado; não lhe deem ouvido – diz o velho mocho aos alunos que se puseram todos ao redor da carteira da coruja.
- Mas eu não sonhei apenas – diz Ariana agora, com um fio de voz, de medo de ter que confessar que saiu do ninho sozinha. – Eu vi! Eu vi um outro mundo e não era todo preto!
- Agora chega de bobagens! – diz o professor, e sua voz torna-se dura. – Vá já para casa, Ariana! Você voltará à escola apenas quando estiver disposta a ouvir o que digo e deixar de acreditar em suas fantasias!
Expulsa da escola, a corujinha voa e vai refugiar-se sobre um ramo do grande carvalho.
- Eu não posso ficar quieta; eu vi aquele outro mundo, eu vi... – repete soluçando.
- Ora, pequena, não chore! – diz uma voz gentil.
Ariana enxuga os olhos com as asas e depois, olhando em volta, pergunta:
- Quem fala? Quem é você?
- Sou o velho carvalho. Não fique triste, Ariana; eu sei que o que você diz é verdade.
- Então você também o viu! Você também o viu, viva! – grita a corujinha, saltitando sobrei ramo do carvalho. Depois pergunta tudo de um só fôlego:
- E como se chama aquele outro mundo? Do que é feito? E por que o velho mocho não acredita que exista? E por que os olhos me doem tanto quando olho para ele?
- Calma, calma, uma pergunta por vez, pequena! Aquele outro mundo chama-se dia e é feito de luz e de cores. O velho mocho não acredita que exista, provavelmente porque jamais o tenha visto realmente, ou talvez porque... – o carvalho agora fica calado.
- Não interrompa, carvalho querido, eu lhe peço!
- Bem, talvez tenha havido um momento, quando o mocho real era jovem, em que com ele tenha acontecido a mesma coisa que aconteceu com você, mas que ele preferiu acreditar que era apenas um sonho, porque, para conhecer esse outro mundo, é preciso sofrer muito. Você já percebeu isso, corujinha: seus olhos não podem suportar a luz do dia. Se você quiser continuar a vê-la, eu lhe aviso: seus olhos doerão muito, mas muito mesmo. Assim, cabe a você decidir: você pode voltar à escola e pedir desculpas a todos dizendo que foi apenas um sonho...
- Não, não! Eu não posso voltar mais à escola! Eu amo a luz! Eu quero conhecer as cores!
- Então, coragem, pequena, e boa sorte!
Dessa forma, Ariana não voltou mais à escola. Agora, aprendeu a dormir de noite e a voar de dia. O velho carvalho ensinou-lhe os nomes de todas as cores e Ariana não se cansa nunca de admirá-las. E está feliz, ainda que tenha que, a cada dia, pedir a seus olhos para fazerem um esforço doloroso para olhar a luz.
E, numa manhã quente de verão, a dor torna-se insuportável: para a corujinha, os raios dourados do sol são como lâminas de faca que lhe furam os olhos.
Ariana procura desesperadamente mantê-los abertos, mas, repentinamente, tudo fica escuro diante dela.
- Luz... luz, onde está você? – grita assustada. – Por que não posso mais vê-la?
Agora, Ariana voa no escuro, procurando lembrar-se do caminho para chegar ao velho carvalho e, finalmente, consegue pousar sobre seus ramos.
- Onde está a luz? Onde está a minha luz? – pergunta ao carvalho amigo.
O velho carvalho acaricia com suas folhas a cabecinha de Ariana.
- Minha pequenina – diz-lhe docemente – seus olhos não poderão mais ver a luz; ficaram cegos.
- Não mais poderei ver a luz... Não mais poderei ver a luz... – repete ariana, chorando.
- Mas você ainda pode falar da luz – acrescenta devagarinho velho carvalho.
Muito tempo se passou desde que ariana viu a luz pela última vez.
Agora a corujinha construiu um ninho no alto de uma torre, bem de frente ao sol. Ariana não o pode ver, mas sabe que ele está lá.
De vez em quando, aparece alguém para lhe fazer uma visita. Quase sempre é um jovem pássaro noturno que lhe diz ter sonhado com a luz.
- Mas a luz existe? – pergunta o jovem passarinho.
- Sim, existe.
- E eu posso vê-la?
- Sim, mas para isso, você irá sofrer muito.
- E então por que vê-la se faz sofrer?
- Porque seu coração é feito para ela.

Lauretta

(Lauretta. O Bosque dos lilases. São Paulo: Paulinhas, 2000).





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