Um outro mundo
Por entre as ruínas de uma velha torre de pedra, na montanha, existe a escola dos pássaros noturnos, frequentada pelos filhotes das famílias dos mochos, das corujas e das codornizes.
À noite, os pequenos escolares
pegam suas pastinhas e vão assistir às aulas do professor, um velho mocho real.
Hoje, o velho mocho está dizendo uma coisa importante:
- Tudo o que existe é preto. O
preto é a essência de todas as coisas, ou seja, aquilo do que todas as coisas
são feitas. Olhem à sua volta: parece-lhes possível que o céu, a terra, as
plantas, as casas e todos nós possamos existir sem sermos pretos? Não, é
lógico. Portanto, o preto é aquilo que constitui todas as coisas.
As palavras do professor são
fáceis de ser compreendidas por seus jovens alunos. Na verdade, se eles esticam
o olhar para fora das janelas destruídas de sua escola, não veem mais nada que
não seja preto e qualquer coisa em que tentem pensar, só podem imaginá-la
preta.
Ariana, uma corujinha de olhos
redondos, redondos como duas bolinhas de tênis, está anotando em seu
caderninho. O preto, ela escreve diligentemente, é a essência de todas as
coisas. Uma lição fácil hoje, não é preciso preocupar-se em lembrá-la.
Voltando para casa, no oco de um
grande carvalho, Ariana dorme tranquilamente em sua caminha. Uma tímida luz
cor-de-rosa está colorindo o céu; mas agora a corujinha não pode mais vê-la,
pois já dorme profundamente.
Em sonho, Ariana vê-se
transportada a um mundo fantástico, um mundo que ela jamais havia visto antes,
cheio de coisas novas, extraordinárias.
Quando acorda, a corujinha quer
chamar a mãe para contar-lhe o magnífico sonho que teve, mas se dá conta de não
ser capaz; faltam-lhe as palavras para descrever aquilo que viu em sonho,
porque, naquele mundo, não havia nada que fosse preto!
“E se for verdade?” – começa a
se perguntar Ariana. “E se aquele mundo com que eu sonhei existir mesmo? Eu
tenho que saber se é verdade! Eu quero encontrar aquele mundo!”
Mas como pode uma corujinha
partir em busca de um mundo desconhecido? Ariana sabe que a mamãe e o papai
jamais a deixariam partir sozinha para ir sabe-se lá onde. E, então, tem uma
ideia!
Espera até que todos estejam
profundamente adormecidos para sair silenciosamente do ninho.
Um sino está tocando as doze
badaladas do meio-dia. Ariana estica as asas para se soltar no céu, mas, de
repente, uma forte dor nos olhos obriga-a a ficar sobre um galho. “O que está
acontecendo comigo?”, ela se pergunta, assustada.
A dor agora é lancinante e
terrível, mas o desejo de ver que Ariana traz no coração é mais forte do que
tudo o mais e a corujinha retoma o seu voo.
Voa com os olhos semicerrados;
vai batendo contra os ramos das árvores, mas não se arrepende.
Voa assim por algum tempo e,
depois, com um esforço terrível, experimenta esbugalhar os olhos.
Assombro, emoção e alegria
invadem seu coração, porque o mundo que está vendo é exatamente aquele que ela
havia visto em seu sonho!
E, da mesma forma que não pudera
descrever à sua mãe o que havia visto, agora também ela não encontra palavras
para exprimir sua alegria. De seu biquinho sai apenas uma série de “Oooh!”,
“Oooh!” intermináveis.
Inebriada de luz, Ariana voa no
céu sem pousar; mas, quando o sino toca sete badaladas, a pequena coruja volta
depressa para o ninho com medo de que deem por sua falta.
À noite, na escola, Ariana está
sonolenta e encosta a cabeça na carteira, mas logo ouve o velho mocho dizer:
- Como vocês já aprenderam, o
preto é a essência de todas as coisas...
A corujinha abre bem os olhos e
exclama, segura:
- Não é verdade!
Todos olham-na com curiosidade e
alguém pergunta:
- Como é que você sabe, Ariana?
Quem foi que disse? E o que foi que você viu que não é preto?
O professor aproxima-se de
Ariana e lhe pergunta com doçura:
- Então, Ariana, que história
estranha é essa? Por acaso você sonhou?
- Sim , eu sonhei...
- Então, eu lhes dizia que ela
tinha sonhado; não lhe deem ouvido – diz o velho mocho aos alunos que se
puseram todos ao redor da carteira da coruja.
- Mas eu não sonhei apenas – diz
Ariana agora, com um fio de voz, de medo de ter que confessar que saiu do ninho
sozinha. – Eu vi! Eu vi um outro mundo e não era todo preto!
- Agora chega de bobagens! – diz
o professor, e sua voz torna-se dura. – Vá já para casa, Ariana! Você voltará à
escola apenas quando estiver disposta a ouvir o que digo e deixar de acreditar
em suas fantasias!
Expulsa da escola, a corujinha
voa e vai refugiar-se sobre um ramo do grande carvalho.
- Eu não posso ficar quieta; eu
vi aquele outro mundo, eu vi... – repete soluçando.
- Ora, pequena, não chore! – diz
uma voz gentil.
Ariana enxuga os olhos com as
asas e depois, olhando em volta, pergunta:
- Quem fala? Quem é você?
- Sou o velho carvalho. Não
fique triste, Ariana; eu sei que o que você diz é verdade.
- Então você também o viu! Você
também o viu, viva! – grita a corujinha, saltitando sobrei ramo do carvalho.
Depois pergunta tudo de um só fôlego:
- E como se chama aquele outro
mundo? Do que é feito? E por que o velho mocho não acredita que exista? E por
que os olhos me doem tanto quando olho para ele?
- Calma, calma, uma pergunta por
vez, pequena! Aquele outro mundo chama-se dia e é feito de luz e de cores. O
velho mocho não acredita que exista, provavelmente porque jamais o tenha visto
realmente, ou talvez porque... – o carvalho agora fica calado.
- Não interrompa, carvalho
querido, eu lhe peço!
- Bem, talvez tenha havido um
momento, quando o mocho real era jovem, em que com ele tenha acontecido a mesma
coisa que aconteceu com você, mas que ele preferiu acreditar que era apenas um
sonho, porque, para conhecer esse outro mundo, é preciso sofrer muito. Você já
percebeu isso, corujinha: seus olhos não podem suportar a luz do dia. Se você
quiser continuar a vê-la, eu lhe aviso: seus olhos doerão muito, mas muito
mesmo. Assim, cabe a você decidir: você pode voltar à escola e pedir desculpas
a todos dizendo que foi apenas um sonho...
- Não, não! Eu não posso voltar
mais à escola! Eu amo a luz! Eu quero conhecer as cores!
- Então, coragem, pequena, e boa
sorte!
Dessa forma, Ariana não voltou
mais à escola. Agora, aprendeu a dormir de noite e a voar de dia. O velho
carvalho ensinou-lhe os nomes de todas as cores e Ariana não se cansa nunca de
admirá-las. E está feliz, ainda que tenha que, a cada dia, pedir a seus olhos
para fazerem um esforço doloroso para olhar a luz.
E, numa manhã quente de verão, a
dor torna-se insuportável: para a corujinha, os raios dourados do sol são como
lâminas de faca que lhe furam os olhos.
Ariana procura desesperadamente
mantê-los abertos, mas, repentinamente, tudo fica escuro diante dela.
- Luz... luz, onde está você? –
grita assustada. – Por que não posso mais vê-la?
Agora, Ariana voa no escuro,
procurando lembrar-se do caminho para chegar ao velho carvalho e, finalmente,
consegue pousar sobre seus ramos.
- Onde está a luz? Onde está a
minha luz? – pergunta ao carvalho amigo.
O velho carvalho acaricia com
suas folhas a cabecinha de Ariana.
- Minha pequenina – diz-lhe
docemente – seus olhos não poderão mais ver a luz; ficaram cegos.
- Não mais poderei ver a luz...
Não mais poderei ver a luz... – repete ariana, chorando.
- Mas você ainda pode falar da
luz – acrescenta devagarinho velho carvalho.
Muito tempo se passou desde que
ariana viu a luz pela última vez.
Agora a corujinha construiu um
ninho no alto de uma torre, bem de frente ao sol. Ariana não o pode ver, mas
sabe que ele está lá.
De vez em quando, aparece alguém
para lhe fazer uma visita. Quase sempre é um jovem pássaro noturno que lhe diz
ter sonhado com a luz.
- Mas a luz existe? – pergunta o
jovem passarinho.
- Sim, existe.
- E eu posso vê-la?
- Sim, mas para isso, você irá
sofrer muito.
- E então por que vê-la se faz
sofrer?
- Porque seu coração é feito
para ela.