21 - DOIS MESES ANTES
I
Grande confeitaria paulista, ao anoitecer. Clientela numerosa.
Quando Olavo Dias, denodado trabalhador da seara espírita, se aproxima da caixa para efetuar o pagamento de certa compra, surge a atordoada:
– Ladrão! Ladrão! Pega o ladrão! Pega! Pega!
Alia-se um guarda a robusto balconista e agarra pobre homem, extremamente mal vestido, que treme ao apresentar grande pacote nas mãos.
– Ele roubou de um freguês – grita o caixeiro, como que triunfante ao guardar a presa.
Quase todos os rostos se voltam para o infeliz.
O policial apresta-se para as providências que o caso lhe sugere, mas Olavo Dias avança e toma a defesa.
Não é um ladrão – explica – e não admito qualquer violência.
E no propósito de ajudá-lo, Olavo mente, afirmando:
– E meu empregado e, decerto, retirou o pacote julgando que me pertencesse.
Enérgico, toma o embrulho, devolve-o ao gerente, pede desculpas pelo engano e afasta-se com o desconhecido, dando-lhe o braço, como se o fizesse a um parente, diante dos circunstantes perplexos.
Dobrando, porém, a primeira esquina, dirige-lhe a palavra, admoestando:
– Ora essa, meu caro! Sou espírita e um espírita não deve mentir. Entretanto, fui obrigado a isso para defendê-lo.
O interpelado mergulha a fronte nas mãos ossudas e explica em lágrimas:
– Doutor, roubei porque tenho seis filhos com fome... Sou doente do peito... Não acho serviço...
– Bem, bem – falou Olavo, comovido –, não estou aqui para fazê-lo chorar.
Condoído, abriu a bolsa, deu-lhe o concurso possível e perguntou-lhe pelo endereço.
O infeliz declarou chamar-se Noel de Souza, deu os nomes da esposa e dos filhos e informou residir nas proximidades da Vila Maria, em modesto barracão.
O benfeitor, realmente sensibilizado, prometeu visitá-la na primeira oportunidade, e, finda uma semana, ei-lo de automóvel a procurar pela casinha distante.
Depois de algum esforço, localizou-a.
Encontrou a senhora Souza e os seis filhinhos esquálidos, mas o dono da casa não estava.
Saíra para angariar socorro médico.
Olavo, tocado de compaixão, fez quanto pôde pela família sofredora e, ao despedir-se, ouviu a dona da casa dizer-lhe sob forte emoção:
– Um dia, se Deus quiser, Noel há de retribuir o senhor por tudo o que está fazendo...
Precisando deixar S. Paulo, em função da vida comercial, Olavo recomendou os novos protegidos a diversos companheiros, e esqueceu a ocorrência.
II
Decorridos seis meses, Olavo, certo dia, chega apressado ao aeroporto de grande cidade brasileira.
Precisava viajar urgentemente, mas não tem passagem. Arriscar-se-á, no entanto, à aquisição de última hora.
Retendo pequena pasta, procura na multidão um amigo que o precedera, minutos antes, com o fim de ajudá-lo, até que o vê a pequena distância, acenando-lhe a que se apresse.
O problema está resolvido. Basta que apresente a documentação necessária.
Avança, presto, mas alguém cruza o caminho. Sente-se abraçado numa explosão de ternura.
Olavo tenta quebrar o impedimento afetivo, mas reconhece Noel de Souza e estaca, surpreendido.
– Você... aqui?
O amigo está humildemente trajado, mas limpo e alegre.
– Sim, doutor, preciso vê-lo – confirma o interlocutor.
– Agora, não – falou Olavo, contrafeito.
Como se não lhe anotasse o azedume, o outro tomou-lhe o braço e arrasta-o docemente para fora do raio de visão do companheiro que o espera.
– Souza, não me detenha, não me detenha... – roga Olavo, inquieto.
– Escute, doutor, preciso agradecer-lhe...
E como se não lhe pudesse escapar da mão, Olavo escuta-lhe a fala entediado e impaciente. Noel refere-se à esposa e aos filhos e repete frases de gratidão e carinho.
Depois de alguns instantes, Dias, revoltado, desvencilha-se e abandona-o sem dizer palavra. Alcança o amigo, mas é tarde.
O avião não pudera esperar.
Acabrunhado, vê, de longe, o aparelho de portas cerradas, na decolagem.
Bastante desapontado, busca Noel de Souza para ouvi-lo com mais atenção, já que perdera a viagem. Entretanto, por mais minuciosa a procura, não mais o encontra.
Daí a quatro horas, recebe trágica notícia.
O aparelho em que disputara lugar caíra de grande altura, sem deixar sobreviventes.
Intrigado, regressa a S. Paulo e corre a visitar a choupana de Noel. Quer vê-lo, abraçá-lo, comentar o acontecimento.
Mas, no lar modesto de Vila Maria, veio a saber que Souza desencarnara dois meses antes.
(XAVIER, Francisco Cândido. Do livro: Almas em Desfile. Pelo Espírito de Hilário Silva. Ed. FEB).
10 - O CASO PITANGA
— Doutor, por quê? — perguntou o pobre homem ao engenheiro que o interpelava.
— Você já tem nove anos e pico. A fábrica não deseja ter elementos estabilizados em demasia. Você sabe. A lei...
— Doutor, mas isso me acontece pela segunda vez na vida. Sou viúvo e, apesar disso, crio seis netos órfãos de pai e mãe. Desisto de qualquer direito. Preciso trabalhar. Vivo num barracão alugado, não tenho roupa, não tenho facilidades, mas o que ganho dá para os meninos. Isso é a minha vida...
O chefe notou que o servidor deitava lágrimas, qual se fora mamoeiro dilacerado, e condoeu-se.
Ânimo, Pitanga! — falou, batendo-lhe no ombro.
Mas João Pitanga, o encarregado da limpeza, largou a vassoura e passou a soluçar.
O diretor, preocupado, deu-lhe o braço e arrastou-o, quase, até o gabinete, e fê-lo sentar-se.
— Ora, ora! que é isso? Você, chorando? Você é um homem...
— Ah! doutor, tenho quase sessenta anos! ninguém me empregará mais... E depois...
— Depois, o quê?
Pitanga arrancou do bolso um pedaço de pano pardo, que devia ter sido um lenço em outra época, enxugou a pasta de suor e lágrimas, e falou:
— Doutor, há vinte e oito anos, eu era empregado numa casa bancária e conduzia cem contos de réis num trem suburbano. No atropelo do desembarque, por falta de atenção,
tomei uma pasta semelhante como sendo a minha. Agarrei-a... Mas, ao abri-la, verifiquei o engano. Só havia lá dentro um livro de contabilidade e vários cadernos de estudo. A firma que esperava o dinheiro telefonou para o Banco. Detido no Distrito Policial, ninguém acreditou na minha palavra. Não fosse um amigo que se responsabilizou por mim e teria amargado muito tempo na cadeia. Quis suicidar-me, mas fiz-me espírita e compreendi que o sofrimento é o remédio da purificação espiritual. Para pagar a dívida, minha esposa e eu montamos uma lavanderia. Trabalhamos dez anos, quase passando fome. E quando resgatamos a última prestação, minha mulher morreu tuberculosa. Tínhamos um filho, bom companheiro, que foi esmagado sob as rodas de um caminhão, ao entregar a roupa lavada. Quando a viuvez chegou, restava-me a filha... Coloquei-me numa fábrica de massas alimentícias. Ganhava pouco, mas tinha a compensação de ver Dorinha feliz.
Antes de completar dez anos de casa, como agora, fui despedido. Empreguei-me aqui, como varredor. Minha filha casara-se, mas o marido, que era operário numa fábrica de
móveis, perdeu uma das pernas num desastre de trem. Desde essa época, ficou nervoso, perturbado... Deu muito trabalho e veio, por fim, a descansar na morte, há quatro anos.
Dorinha, porém, não resistiu e acompanhou o marido, depois de uma longa tuberculose.
Deixaram-me seis filhos... Seis crianças que esperam por meus braços de velho... Que farei?
O Dr. Abranches consolou-o.
Faria tudo para ajudá-lo.
Que João viesse toda semana a ver se lhe obtinha uma beirada na fábrica.
Naquela hora, contudo, não podia torcer decisões da Diretoria.
E de semana a semana, Pitanga remendado, carregando o chapéu, chegava, indagando:
— Dr. Abranches, será que já posso vir outra vez?
— Ainda não, Pitanga. Mas logo que a crise dos tecidos desapareça, tratarei de seu caso.
E João voltava, mais triste.
Para que a comida não ficasse mais curta, começou a apanhar papéis na rua e pedir jornais velhos.
Diversas famílias espíritas passaram a cooperar.
II
Ameaçado de despejo e cercado de cobranças, João apanhava sol para aquecer as costelas cansadas de bronquite, acocorado à porta de casa, quando uma bicicleta
chegou.
Um rapaz dos correios entregou-lhe um telegrama.
Assunto urgente.
Um amigo, que ele não conhecia, chamava-o em termos carinhosos.
Morava em bairro distante, estava doente e queria vê-lo.
Pitanga esperou quatro dias, até arranjar dinheiro para o bonde.
E fez a viagem, sem maiores preocupações.
Era médium passista. Costumava receber solicitações daquela natureza para confortar doentes, aqui e ali...
Espantou-se, porém, ao chegar no endereço indicado, porque, ao dizer quem era, foi introduzido de imediato.
Guiado por velha governanta, atravessou duas salas e grande corredor ricamente mobiliados, e entrou num aposento em que um homem enfermo parecia enterrado em
colchas brancas.
No doente, em que ossos se mostravam à pele, só os olhos mostravam intensa vida.
Entretanto, com esforço, o doente estendeu-lhe a mão, como garra mole, e, depois de fazê-lo sentar-se, falou, comovido:
— João Pitanga, conheço você há quase trinta anos, sem que você me conheça. E decerto sairia do mundo sem apertar-lhe a mão; mas, sitiado há quatro meses pelo
câncer, conheci a Doutrina Espírita e minha consciência despertou... Pedia a Deus não me deixasse partir sem vê-lo, para pedir-lhe perdão...
Diante de Pitanga, boquiaberto, o homem fez longo intervalo e continuou:
— Há vinte e oito anos, viajava ao seu lado, vindo da academia em que me fiz contador.
Ao desembarcar, tomei sua pasta, como sendo a minha e só em casa dei pelo engano.
Tinha nas mãos os cem contos de réis pelos quais você sofreu tanto... Soube daí a dois dias que você estava na polícia, acusado injustamente, mas calei-me. Era ambicioso.
Tinha planos. Montei uma loja com o dinheiro e a loja prosperou. Depois de dez anos, era um homem rico e podia gastar... Esqueci o seu nome, o seu problema e atirei-me ao lucro fácil. Fiquei milionário. Contudo, ai de mim! A fortuna envolveu minha casa em trevas.
Com dois filhos, minha esposa esqueceu as obrigações e entregou-se a um aventureiro e humilhou-me quanto pôde. Por amor aos meus filhos, não me desquitei. Minha mulher, porém, suicidou-se, ao ver-se abandonada pelo homem que tanto mal me fez. Meu rapaz, envenenado talvez pelo dinheiro farto, começou a fazer loucuras e morreu num desastre de automóvel, por ele conduzido em estado de embriaguez. Minha filha casou-se, mas meu genro não se sentia co necessidade de trabalhar, viciou-se com a maconha e acabou perturbado, num sanatório. Viúva, minha filha não agüentou a solidão e, ainda impressionada com o exemplo materno, suicidou-se também, deixando-me dois netos...
Os meninos, porém, são retardados mentais, e fui compelido a deixá-los indefinidamente num colégio adequado...
Pitanga, machucado no coração, chorava copiosamente.
— Como vê — prosseguiu o enfermo —, você sofreu muito, mas tenho pago um preço terrível pelas aflições que lhe dei... Antes de conhecer o seu paradeiro, tomei contacto
com as verdades do Espiritismo e procurei distribuir o possível entre as instituições de beneficência...
E designando uma caixa forte:
— Peço a você, porém, que abra o cofre e retire os novecentos mil cruzeiros que estão lá dentro. São seus... Não lhe entrego o resto do que tenho, porque os dois netos precisam de pensão... Aceite, Pitanga! Aceite e perdoe-me! E creia que não vou sem culpa na grande viagem... O seu perdão, contudo, será para mim nova força no Mundo Espiritual...
Havia tanta confiança e doçura no pedido, que João abriu o cofre e recolheu o dinheiro.
Em seguida, conversaram, trocando confidências, como velhos amigos.
Oraram.
Pitanga aplicou-lhe passes.
O doente ainda viveu seis dias no corpo físico e João visitou-o diariamente, assistindo-o, até à hora última.
No dia seguinte ao dos funerais, Pitanga voltou à fabrica, procurou o Dr. Abranches e contou-lhe o sucedido, pedindo conselho.
— Agora, João, você está bem — disse o chefe, sorrindo.
— Não, doutor. Estou preocupado. Não quero que meus netos saibam que tenho esse dinheiro. Ajude-me a empregá-lo.
— Você poderá pagar suas dívidas e guardar mais de oitocentos contos em ações na fábrica. Haverá bom rendimento.
— Mas...
— Mas o quê?
— Queria que o senhor pedisse à Diretoria para dar-me trabalho, ainda que eu tenha de ser novamente despedido, daqui a nove anos...
O Dr. Abranches sorriu e prometeu colaborar.
Daí a quatro dias, quando Pitanga voltou, encontrou a ordem Fora readmitido.
E sem esperar pelo dia seguinte, pediu a vassoura e recomeçou a varrer...
(XAVIER, Francisco Cândido. Do livro: Almas em Desfile. Pelo Espírito de Hilário Silva. Ed. FEB).